33 m uma clara manhã de março, James abriu a porta e se deparou com Geraldine Lucey. – Olá, padre, desculpe incomodá-lo, mas tenho notícias sobre Merry O’Reilly. – Certo. Entre, por favor – pediu ele, indicando uma das poltronas de couro perto da lareira. – Pela sua cara, suspeito que não sejam boas notícias... – São, sim, padre. Merry ganhou a bolsa de estudos, mas... James sentiu um nó na garganta. Engoliu em seco, sabendo que era inapropriado mostrar tanta emoção por um jovem membro de seu rebanho. – Essa é uma notícia maravilhosa, Geraldine! Simplesmente maravilhosa. Então, qual é o problema? – O problema, padre, é que mesmo que a bolsa cubra as taxas escolares, não cobre os gastos extras. Veja... – Geraldine tirou um envelope da bolsa. – O uniforme está incluso, mas ela vai precisar de uma longa lista de itens: um kit de ginástica, vários tipos de sapatos, um bastão para jogar camogie, camisolas, um roupão, chinelos... isso sem falar das tarifas de trem daqui para Dublin. Ah, padre, nós dois sabemos que John O’Reilly mal tem dinheiro para alimentar sua família, quanto mais para comprar tudo isso só para Merry! – Não, ele não tem, mas... Olhe, você pode me dar algum tempo para pensar nisso? Pode haver uma maneira de conseguir o dinheiro necessário. – É mesmo? Como? – Como eu falei, deixe comigo. Não diga nada a Merry ainda. Não queremos dar esperanças para depois decepcioná-la, não é? – Claro, padre. Devo deixar a papelada aqui? Temos um prazo de catorze dias para avisar a eles se Merry vai aceitar. – Sim, obrigado – disse ele. Geraldine se levantou e caminhou até a porta. – Ah, padre, eu espero que ela possa ir. Ela merece o melhor ensino do mundo. – Eu sei, e vou fazer de tudo para garantir que ela vá. – Ora, é claro que eu pago! James, meu amigo, você nem precisava perguntar – disse Ambrose ao telefone mais tarde naquele mesmo dia. – Eu não poderia estar mais feliz por Mary ter ganhado a bolsa de estudos. Deveríamos estar celebrando seu sucesso, não nos preocupando com detalhes. – Podem ser detalhes para você, Ambrose, mas o pai e a família de Merry não verão sua partida desse jeito. Preciso encontrar uma maneira de convencer John O’Reilly de que essa é a coisa certa a fazer. – Eu sei, James. Perdoe-me, mas não posso deixar de ficar aliviado e emocionado. Então, como você planeja lidar com isso? – Ainda não tenho certeza, mas vou pedir uma orientação, como sempre. – Bem, se Deus sugerir que você mencione um novo trator para ajudar John a aliviar a perda da filha, então, por favor, me avise – avisou Ambrose, rindo. Depois de rezar, mas não encontrar uma resposta direta, James decidiu que deveria deixar seus instintos o guiarem. No domingo seguinte, após a missa, ele perguntou a um John de olhos arregalados se poderia ir visitá-lo na noite seguinte. – Pode ser às seis horas, padre. Eu tenho... coisas para fazer a partir das sete. Tem alguma coisa errada? – De jeito nenhum. Na verdade, é uma notícia muito boa. – Eu bem que preciso de uma notícia boa neste momento. Adeus, padre. James viu o homem vagando pela longa fileira de túmulos dos O’Reillys no cemitério ao redor da igreja. O restante de sua família estava ajoelhada sobre o local onde a mãe e seu bebê recém-nascido tinham sido enterrados. Ainda não havia uma lápide, e a visão dos filhos de Maggie O’Reilly colocando ramalhetes de flores de primavera colhidas nos campos e arbustos trouxe lágrimas aos seus olhos. Até Bill e o pequeno Pat tinham colocado um punhado de violetas selvagens sobre o monte, onde a grama ainda não crescera. – Eu confio no Senhor, mas às vezes não entendo como o Senhor trabalha – murmurou James, enquanto caminhava de volta para dentro da igreja. – Essa é a situação, John. A questão é: o que você acha? Como pai de Merry, a última palavra é a sua. James viu o rosto de John O’Reilly expressar várias emoções. Ele fez uma longa pausa antes de falar. – É o seu amigo Ambrose Lister quem vai pagar? – Não. Merry ganhou a bolsa de estudos por seus próprios méritos. É uma grande conquista, John, e todo o crédito deve ser dado a ela. Houve outro longo silêncio. – Eu... e Maggie... nós a amamos muito. Maggie sempre dizia que ela era especial. Merry tem uma boa cabeça, mas tem um bom coração também, e muita força. Foi ela quem consolou os pequenos e dormiu com eles enquanto choravam pela perda da mãe. Nora e Katie podem ser melhores para lavar e cozinhar, mas foi Merry quem manteve o espírito desta família desde que... James só pôde observar enquanto John colocava a cabeça nas mãos. – Desculpe, padre. Eu amei Maggie desde o momento em que a vi em um ceilidh, em Timoleague. Nossos pais não aprovaram; os pais dela se recusaram a dar a bênção, mas Maggie e eu nos casamos mesmo assim. Ela abriu mão de tudo para ficar comigo, e o que foi que eu dei a ela? Uma vida infernal, só isso! Teria dado no mesmo se eu a tivesse acorrentado em um porão, quase sem comida. E então... meu Deus, padre, eu a matei colocando aquela criança dentro dela, mas eu e Maggie... além do amor... esse outro lado sempre fez parte do nosso casamento. – Vocês também tiveram sete filhos lindos, que são frutos desse amor – comentou James, com voz calma. – E você deve agradecer ao Senhor por isso. John olhou para ele. – Eu não quero perder Merry, mas sou eu quem tem que tomar essa decisão? – Você é o pai dela, John. É você, sim. – O que o Sr. Lister acha? – Que ela deve ir. A prioridade dele é a educação. Ele ensina em uma universidade famosa. Acha que é uma oportunidade para Merry investir em si mesma. John fez outra pausa antes de falar: – Então é isso que ela deve fazer. É o que a minha Maggie iria querer. Mesmo que parta o meu coração. – Ela vai voltar para casa nas férias, John. E Bridget O’Mahoney vai estudar com ela, então pelo menos terá alguém que Merry já conhece. Elas podem ir para Dublin juntas no trem. Você quer contar a ela ou quer que eu conte? – O senhor, padre. Eu não saberia o que dizer. Quando James saiu da sala, teve um vislumbre de John pegando uma garrafa de uísque ao lado de sua poltrona e sentiu uma enorme tristeza por aquele homem simples e bom, alquebrado pela dura vida que Deus escolhera para ele. Merry e Katie estavam na cozinha preparando a mesa para o jantar quando o padre O’Brien entrou e pediu para falar com Merry do lado de fora. Ele fez sinal para ela se sentar no banco do pátio. – Eu fiz alguma coisa errada, padre? – Não, não, Merry, de jeito nenhum. Muito pelo contrário, na verdade. Você ganhou a bolsa de estudos. – O quê? Merry olhou para James como se ele tivesse dito que ela estava prestes a levar um tiro. – Você ganhou a bolsa de estudos para o internato em Dublin. – Eu... E então ela caiu em prantos. – Merry, por favor, não chore. É uma notícia maravilhosa. Você venceu meninas de todo o país. Isso significa que você é muito inteligente. – Mas... deve ser um erro! Eu sei que fracassei. É um erro, padre, só pode ser. – Não, Merry, não é. Veja, aqui está a carta. James a viu ler o documento, sua expressão mudando para espanto e em seguida de volta ao tormento. – O que você acha? – perguntou ele. – Acho que é legal da parte deles me oferecerem, mas eu não posso ir. – Por que não? – Porque Nora, Katie e os pequenos precisam de mim aqui. Eu não deixaria minha família. O que o papai ia dizer? – Eu conversei com ele, e ele disse que você deve ir. Ele ficou muito orgulhoso de você, Merry. – Ele quer que eu vá? – Sim. Ele acha que é uma oportunidade maravilhosa. Como eu também acho, e Ambrose. – Mas é em Dublin, é muito longe. – Eu entendo, mas você vai voltar nas férias e... – James fez uma pausa, querendo escolher as palavras com cuidado. – Merry, o mundo é muito maior do que West Cork e está se tornando ainda maior para as jovens. Com uma educação adequada, você pode ter um futuro maravilhoso pela frente. Ambrose sempre acreditou na sua capacidade. – Posso... Posso pensar sobre isso? – É claro que pode. Me avise quando tiver decidido. Naquela noite, deitada em sua cama, Merry contou a Katie a notícia que o padre O’Brien tinha lhe dado. Esperando que a irmã reagisse com raiva e declarasse que não a deixaria ir porque teria mais trabalho para fazer, Merry ficou chocada quando Katie assentiu calmamente. – Você precisa disso, Merry – revelou ela. – Não! Eu preciso ficar aqui e ajudar você e Nora a cuidar de Pat, Bill e papai, e da fazenda... – Você vai fazer isso indo para Dublin e ficando ainda mais inteligente, e deixando esta família rica – disse ela. – Ellen me mostrou algumas revistas. Merry, meninas em Dublin dirigem carros! E dançam em shows de rock, não em ceilidhs... Talvez eu possa até ir visitar algumas vezes, para ver pessoalmente. Ficaremos bem aqui sem você. Vamos sentir muito a sua falta, mas você volta nas férias. – Katie, estou com medo. Dublin é uma cidade grande, e eu vou sentir saudades de todos vocês. – Eu sei – disse ela, abraçando a irmã. – Mas eu vou lhe contar uma coisa, Merry O’Reilly: quando eu crescer, não vou ficar nesta vida que temos agora. Mamãe morreu por causa disso, e olhe para Ellen: ela se casou com o filho de um fazendeiro, já tem um bebê e outro a caminho. Ela trocou uma vida dura por outra, e eu não vou fazer isso. Minha saída é a minha aparência, a sua é o seu cérebro. Use o que Deus lhe deu, Merry, como eu vou usar, então nenhuma de nós vai passar o resto de nossas vidas limpando chiqueiros. Pense no que mamãe ia querer para você. Eu sei que ela lhe diria que é a coisa certa a fazer. Com a aprovação de sua amada irmã e de seu pai, e com a Srta. Lucey, o padre O’Brien e Ambrose dizendo que ela deveria ir, Merry finalmente concordou. Houve uma festinha na fazenda e, pela primeira vez, Merry não se importou que o pai bebesse uísque, porque ele pegou seu violino e tocou, enquanto as crianças dançavam ao redor da Sala Nova. O pequeno Pat não entendia por que todos estavam felizes e dançando, mas não importava, pensou Merry, porque era a primeira vez que ela via sua família sorrir desde que a mãe morrera. Todos, exceto Nora, que tinha olhado para ela com cara feia quando papai anunciara a boa notícia. Mas todos sabiam que ela era uma boba invejosa, então Merry a ignorou. No início de setembro, vestida com seu novo uniforme escolar, Merry saiu para o pátio para se despedir de todos os animais. O pai de Bridget logo chegaria em seu carro e as levaria à estação em Cork, para que pudessem pegar o trem para Dublin juntas. Seria a primeira vez que Merry andaria de trem, e quando confessou isso para Bridget, a colega não riu, como ela esperava, apenas disse que as duas se divertiriam muito, pois sua governanta embalaria um piquenique com muitos sanduíches para o almoço e uma grande barra de chocolate de sobremesa. – Vai ter comida o bastante para nós duas, prometo. Talvez elas pudessem ser amigas, afinal, pensou Merry. Estava quente no curral das vacas, e havia o ruído familiar dos bezerros. – Merry! – gritou seu irmão, que estava trocando a palha. – Não vá sujar essas suas roupas novas tão bonitas. Fora daqui! – Ele a fez sair para o pátio e lhe deu um grande abraço. – Não vá ficar metida e voltar para cá falando com o sotaque de Dublin, hein? Cuide-se bem na cidade grande. – Eu vou me cuidar, John, e nos vemos em breve. Depois que se despediu dos porcos e das galinhas, Merry atravessou o campo para se despedir das vacas. Ela subiu em uma cerca e olhou para o vale. Tentou não se assustar com a ideia de sua nova vida em Dublin, porque sabia que pelo menos Ambrose estaria lá. Ele havia dito que ela poderia ficar em sua casa durante o que a escola chamava de “saídas”. Ambrose explicara que isso significava que os alunos eram autorizados a deixar a escola durante o fim de semana, e ela estaria muito longe para viajar para casa. – Olá, Merry. A menina pulou quando ouviu a voz atrás dela. – Bobby Noiro! – Ela se virou para olhar o menino. – Por que você não pode dizer oi como uma pessoa normal? – reclamou ela. – Você vai embora hoje? – Vou, o pai da Bridget vai nos levar de carro até a estação em Cork. – Ele é um simpatizante dos britânicos – disse ele, bufando. – Foi assim que ganhou todo o seu dinheiro. – Pode ser, mas é melhor do que arrastar minha mala a pé até lá – retrucou ela, agora imune aos seus comentários maldosos. – Eu tenho uma coisa para você – começou ele, enfiando a mão no bolso da calça e tirando dali um pequeno livro preto. – É um livro muito especial, Merry. É o diário da minha avó, Nuala. Já falei dele. Leia e você vai entender. Ele colocou o pequeno livro nas mãos dela. – Bobby, não posso aceitar isso! Deve ser muito precioso para você. – Bem, estou lhe dando porque quero que você saiba como era a vida dela e que veja o que os britânicos fizeram conosco, e como minha família lutou pela Irlanda e pela liberdade. É o meu presente para você, Merry. Leia, por favor. – Eu... Obrigada, Bobby. Ele a encarou por algum tempo, seus olhos azuis ficando quase pretos. – Você vai voltar, não vai? – perguntou ele, depois de alguns segundos. – É claro que vou! Vou estar em casa para o Natal. – Vou chamar você de “a irmã desaparecida” até você voltar, como na história grega que me contou uma vez sobre as Sete Irmãs e Iron – disse ele. – Vou precisar que você volte, Merry. Você é a única com quem consigo conversar. – É Órion, não Iron, e é claro que você vai ficar bem sem mim – respondeu ela. – Não. – Bobby balançou a cabeça ferozmente. – Eu preciso de você. Nós somos diferentes de todos aqui. Até logo, Merry. Cuide-se lá em Dublin. E lembre-se: você é minha. Com um arrepio, Merry o viu correr pelo campo. E, pela primeira vez, sentiu-se feliz por estar indo para longe. Ao ouvir o barulho de um automóvel, Merry viu o pai de Bridget subindo a colina em direção à fazenda. Então ela pulou da cerca e correu de volta pelo campo. John, Katie e Nora tinham saído para se despedir, levando Bill e Pat, com cabelos escovados e rostos limpos, para que não passassem vergonha na frente de Emmet O’Mahoney. Merry sentiu lágrimas arderem em seus olhos quando viu que papai também tinha saído de casa com uma camisa limpa. Ele caminhou até ela e deu um beijo rápido em seu rosto. – Sua mãe estaria orgulhosa de você, Merry – sussurrou ele em seu ouvido. – Eu também estou. Ela assentiu, incapaz de responder com o nó em sua garganta. – Cuide-se em Dublin, e aprenda muitas coisas. Merry sentiu o pai colocar uma moeda em sua mão e depois a abraçou e, de repente, tudo o que ela desejava era ficar em casa. Ela entrou no carro e se sentou no banco traseiro de couro macio ao lado de Bridget, tentando não chorar. Quando o carro saiu do pátio e ela acenou para a família, lembrou-se das últimas palavras de sua mãe para ela: Você é especial, Merry, nunca se esqueça disso. Promete? Ela tinha feito uma promessa à mãe. E faria o que pudesse para cumpri-la. Merry Dublin, Irlanda Junho de 2008 –E 34 a partir de então, sempre que eu ia para casa nas férias, Bobby me chamava de “a irmã desaparecida”. Eu suspirei. Sentia-me exausta; estava falando havia mais de duas horas, com Ambrose ajudando a preencher as lacunas sobre o papel que ele e o padre O’Brien haviam desempenhado nos bastidores. – Deve ter sido horrível quando sua mãe morreu. – Jack balançou a cabeça com tristeza. – Você era tão jovem. – Foi, sim. Ainda penso nela todos os dias, mesmo depois desse tempo todo – confessei. – Eu a adorava. – Maggie era uma mulher notável – observou Ambrose, e eu vi que ele parecia triste. – Ver a sua família sofrer e saber que eu não podia fazer quase nada para ajudar... – Mas você me ajudou, Ambrose, e agora estou começando a perceber quanto. Então foi você quem deu à Srta. Lucey a enciclopédia Britannica? Eu sempre me perguntei isso. – Sim, e foi um prazer, Mary. Você era uma menina tão forte e alegre, e cresceu muito depressa quando foi para o internato, onde tinha os professores e recursos certos para ajudar a alimentar sua curiosidade. Embora eu sempre me perguntasse se teria sido melhor você ficar com sua família, rodeada pelo amor de seus irmãos e irmãs. – Ambrose, eu não me arrependo de ter ido à escola em Dublin. Sei que eu tinha apenas 11 anos, mas fiz minha escolha mesmo assim, e sei que fiz o que era certo. Se eu tivesse ficado em West Cork, nunca teria ingressado na universidade. Provavelmente teria me casado com um fazendeiro e tido tantos filhos quanto minha mãe – brinquei, sem muita energia. – Eu adoraria conhecer a sua... a minha família – disse Jack. – É tão estranho pensar que a poucas horas daqui vivem pessoas que compartilham nosso sangue. Ambrose se levantou e começou a recolher nossos copos. – Não se preocupe com isso, Ambrose – falei. – Vou lavar tudo antes de irmos. – Mary, eu ainda não estou tão decrépito – retrucou ele, mas eu podia ver que sua mão tremia enquanto ele pegava meu copo de água vazio. Levantei-me e gentilmente tirei-o de suas mãos. – Qual é o problema, Ambrose? Ele me deu um sorriso triste. – Você me conhece bem, Mary. Eu... Existem... detalhes do seu passado que eu sei que deveria ter discutido com você quando lhe dei aquele anel de esmeraldas, tantos anos atrás. Naquela época, achava que ainda teria muito tempo, mas você desapareceu por 37 anos. E agora aqui estamos nós, e eu ainda não lhe expliquei tudo o que ocorreu. – Como assim? – Ah, minha querida, como você pode ver, eu me sinto exausto. Por que você e Jack não voltam amanhã, quando nossas mentes estiverem descansadas? Contanto que você prometa que vai voltar. – Claro – respondi, dando-lhe um abraço. Sentia-me muito culpada de ter abandonado aquele homem, que tinha sido um verdadeiro pai para mim. Assim que Jack e eu lavamos os copos e as xícaras e nos certificamos de que Ambrose estava de volta em sua poltrona, saímos da casa para o ar quente da noite. Merrion Square estava tranquila, e os postes tinham acabado de ser acesos, a noite clara de verão ainda disseminando um brilho suave. Jack e eu jantamos peixe e batatas fritas no restaurante do hotel, minha mente tão cheia de lembranças da minha família que eu mal ouvia meu filho falar. – Mãe, sabe de uma coisa? – disse ele, interrompendo os meus pensamentos. – Você tem razão: Mary-Kate deveria estar aqui em Dublin conosco. Eu sei que vamos ficar na Irlanda por algum tempo, por isso você deveria chamá-la para vir. Seja qual for o quebra-cabeça da irmã desaparecida, seria muito melhor se estivéssemos todos aqui juntos. – Sim, você tem toda a razão. Ela deveria estar aqui, para o caso de... – Para o caso de quê, mãe? Você não vai me contar do que tem tanto medo? Você parou sua história quando foi para um internato, o que aconteceu depois? Tem alguma coisa a ver com aquele cara estranho, Bobby, que a chamava de irmã desaparecida? – Eu... Você queria saber sobre a minha infância, Jack, e o papel de Ambrose nela. Eu já contei. Não consigo contar mais nada. Não antes de descobrir algumas coisas. – Se Ambrose não teve notícias suas desde que você foi embora, deve haver uma razão para isso. – Por favor, Jack, chega de perguntas. Estou muito cansada também e preciso dormir um pouco. Como minha querida mãe costumava dizer: de manhã, tudo vai parecer melhor. Terminamos o jantar em silêncio, depois caminhamos juntos em direção ao elevador. – Em qual andar fica o seu quarto? – perguntei, assim que entramos. – No mesmo que o seu, um pouco mais adiante no corredor, então se tiver qualquer problema é só me chamar. – Não vai haver nenhum problema, mas você pode ligar para Mary-Kate e pedir que ela venha o mais depressa possível? Aqui... – Tirei da bolsa o meu cartão de crédito e o entreguei a Jack. – Pague a passagem, e não diga nada para assustá-la. – Até parece. – Jack revirou os olhos. – Vou dizer a ela que você está se redescobrindo e que seria bom estarmos todos juntos. Boa noite, mãe. Jack me deu um beijo na testa e depois seguiu pelo longo corredor em direção ao seu quarto. – E vê se dorme! – Senão o bicho-papão vem pegar – brincou ele. Entrei no meu quarto, tirei a roupa, tomei um banho e subi na maravilhosa e confortável cama. Fiz uma anotação mental para trocar meu colchão de 35 anos assim que voltasse para casa, na Nova Zelândia – eu ainda dormia no colchão de pelo de cavalo que Jock havia comprado logo após o nosso casamento. Fiquei de olhos fechados, tentando dormir, mas havia tanto zumbido no meu cérebro que parecia que um enxame de abelhas construíra uma colmeia ali. Percebi que no diário de Nuala havia nomes dos quais eu agora me lembrava da minha própria infância. Não adianta tentar resolver tudo hoje à noite, disse a mim mesma, mas ainda assim o sono não apareceu. Usei as técnicas de relaxamento que descobri ao longo dos anos, mas elas me deixaram ainda mais tensa, porque nenhuma funcionou. Por fim, levantei-me, peguei minha garrafa de uísque do Duty Free e bebi até adormecer e mergulhar em um sono inquieto. – Tudo certo – disse Jack quando se juntou a mim para o café da manhã. – O voo de MK já decolou e, contando as conexões e a diferença de fuso, ela deve chegar pouco depois da meia-noite – explicou ele, enquanto nos sentávamos para comer. – As maravilhas da era moderna. – Eu sorri. – Atravessar o mundo em um dia. Olhe quanto os humanos já evoluíram. Na minha infância, isso teria sido considerado um milagre. – Pelo que me contou ontem, você teve uma infância muito difícil – observou Jack, hesitante, enquanto empilhava bacon e ovos no prato, ao meu lado no buffet. – Com certeza nunca tivemos um café da manhã como este, mas nunca passamos fome. Sim, a vida na fazenda era difícil, e todos tínhamos muitas tarefas, mas havia muito amor e risos também. Senti muita falta quando fui para o internato, mesmo sem ter que limpar chiqueiros nas manhãs chuvosas de inverno. Eu mal podia esperar para chegar em casa nas férias. – Seus irmãos não se ressentiram de você por ter tido uma educação melhor que a deles? – De jeito nenhum. Acho que todos sentiram pena de mim. Tive que ter cuidado para não voltar de Dublin “metida”, como eles diziam. Eu sentia mais falta era de Katie. – Suspirei. – Éramos muito próximas. – Pareciam mesmo, pelo que você falou. Só que vocês não mantiveram contato. Você abandonou todo mundo quando foi embora. Por quê, mãe? Meu filho me encarou, seus olhos azuis implorando por explicações. – Como prometi, vou lhe contar tudo, mas ainda não. Agora vamos ouvir o que Ambrose tem a me dizer. – Ok, só vou passar no meu quarto para buscar meu celular e ligar para Ginette, na cave da Provença, avisando a ela que vou ficar fora por um tempo. – Por favor, Jack. – Eu o peguei pelo braço antes de ele sair da mesa. – Se precisarem de você por lá, eu juro que consigo me virar sozinha. – Eu sei que consegue, mãe, mas a colheita ainda vai durar mais um mês, e isso aqui é muito mais importante. Eu a encontro no lobby em quinze minutos, está bem? Quando nos aproximamos da porta da casa de Ambrose, tive uma premonição de que ele queria me revelar algo importante – algo que mudaria a minha vida. Toquei a campainha e senti uma corrente percorrer meu corpo. Ambrose nos recebeu, mas, enquanto nos conduzia à sala de estar, observei que cada um dos seus 85 anos pareciam pesar sobre seus ombros. Jack e eu nos acomodamos no sofá, como no dia anterior. – Você está se sentindo bem hoje? Está me parecendo um pouco pálido, Ambrose – comentei. – Admito que não dormi tão bem quanto de costume, Mary. – Posso preparar um pouco de café para você? Chá? – ofereceu Jack. – Não, obrigado. Depois do tanto de uísque que bebi ontem, preciso de água para recuperar meus órgãos vitais. Para ser sincero, eu só estou mesmo é de ressaca – disse ele, sorrindo. – Prefere que a gente volte mais tarde? Não precisa dormir mais para se recuperar? – ofereci. – Não, não. Acho que, enquanto ainda tenho fôlego e você está aqui, preciso lhe contar a verdade. A alternativa é você receber uma carta de algum advogado qualquer depois da minha morte. Que era o que eu estava planejando fazer até que você apareceu à minha porta. Ambrose deu uma risadinha. Alcancei instintivamente a mão de Jack, e ele apertou a minha. – Ambrose, seja lá o que for, é melhor dizer logo, não é? – É, minha querida. Quando ouvi você falar tão carinhosamente de sua infância e de sua família ontem, percebi que o que eu tenho a revelar vai ser muito difícil, mas... – Ambrose, por favor, nós concordamos, chega de segredos – supliquei. – Quero dizer, não há nada que você possa me dizer, ou a Jack, que eu já não saiba. – Não é verdade. Quando eu lhe dei aquele anel, no seu aniversário de 21 anos... – ele apontou para a minha mão – ... jurei que contaria a verdade sobre de onde você veio. Mas, no último minuto, não contei. – Por quê? E por que o anel é tão importante? – Estou prestes a lhe dizer. Acho que a história que me contou ontem, sobre as pessoas seguindo você de um hotel para outro, tem algo a ver com isso. – Desculpe, Ambrose, mas você não está fazendo nenhum sentido. – Tente entender que objetos podem se tornar símbolos de importância para diferentes grupos. Essas mulheres que foram visitar sua filha na Nova Zelândia, argumentando que Mary-Kate era a irmã desaparecida das Sete... elas não têm, acredito, nada a ver com o seu passado aqui em Dublin. – Ambrose, você não tem como saber disso... – Minha querida Mary, talvez você se surpreenda ao saber que eu já sei um pouco sobre a situação em que você se meteu. Principalmente naquele último ano. Você estava vivendo sob o meu teto, lembra? Eu enrubesci. – Sim, eu sei. Sinto muito, Ambrose. Mas este anel... – Levantei a mão para Jack ver. – Você me falou que os sete pontos em torno do diamante eram para cada irmão e irmã, com nossa mãe no centro. – Eu falei isso, sim, mas infelizmente, Mary, e para a minha vergonha eterna, era mentira. Quer dizer, na verdade eu inventei uma história que sabia que teria significado para você, por causa de seu fascínio pelo mito das Sete Irmãs e pelo fato de você ser uma entre sete irmãos. Eu o encarei, chocada, pois aquele homem, que eu sempre adorara e em quem confiava mais do que em qualquer outra pessoa, havia mentido para mim. – Então... – Eu engoli em seco. – De onde veio o anel? – Antes de contar a vocês como o anel parou em minhas mãos, preciso explicar todo o contexto. Talvez a primeira coisa que você precise entender, Jack, é que, mesmo que os irlandeses tenham sido vitoriosos na Guerra de Independência, isso aconteceu nos termos do governo britânico. Eles dividiram o país entre o Norte britânico e a República Irlandesa no Sul. Isso não melhorou em nada a situação dos pobres dos dois lados da fronteira. Quando você nasceu, Mary, em 1949, a Irlanda tinha acabado de se tornar uma República, mas os níveis de pobreza aqui eram mais ou menos os mesmos da década de 1920. Muitos haviam imigrado para a América, mas os que ficaram estavam sofrendo com os efeitos de outra depressão, que pairava sobre a Europa após a Segunda Guerra Mundial. Eram tempos sombrios na Irlanda; como você mesma viu, famílias como a sua sobreviviam. Em outras palavras, plantavam exclusivamente para se alimentar e se vestir. E para as mulheres irlandesas em particular quase nada mudara. – Você está dizendo que a Irlanda ficou presa ao passado, mesmo que as coisas tivessem mudado politicamente – observou Jack. – Isso sem dúvida era verdade nas áreas rurais, como West Cork. – Ambrose assentiu. – Na época do seu nascimento, Mary, eu tinha acabado de completar meu doutorado em filosofia, aqui na Trinity, e sido promovido a pesquisador. Como você ouviu ontem, eu viajava frequentemente até Timoleague, para ver meu querido amigo James, o padre O’Brien, que havia assumido sua primeira paróquia, que englobava Timoleague, Clogagh e Ballinascarthy. Eu tinha poucos amigos e quase nenhuma família, e James era o meu melhor amigo e confidente. – Era uma longa viagem para você, não era? – observei. – Ainda mais antes de você nascer, minha querida, quando eu ainda não tinha o meu Fusca vermelho. Eu pegava o trem, e lembro que a Sra. Cavanagh, a governanta da casa do padre, me cumprimentava como se eu fosse um monte de algas fedorentas surgidas na praia. Ele riu. – A Sra. Cavanagh não gostava de ninguém – declarei, com certa raiva. – De fato, ela não gostava. Então, Mary, foi em uma dessas visitas a James que minha vida mudou. Vamos voltar a West Cork e àquela época, no dia do seu nascimento, em novembro de 1949... Ambrose e James West Cork Novembro de 1949 O 35 padre James O’Brien acordou subitamente e se sentou na cama. O choro de um bebê tinha enchido seus sonhos e, prestando atenção, ele percebeu que ainda podia ouvi-lo. Beliscando-se para ter certeza de que não estava mais dormindo, e percebendo que não estava, ele saiu do calor de sua cama, caminhou até a janela, que dava para a frente da casa, e puxou as cortinas. Não viu ninguém na entrada nem no jardim – esperava encontrar uma jovem mãe com muitos filhos para cuidar que tivesse ido até ele em busca de consolo porque estava com dificuldades para sustentá-los. Erguendo o vidro da janela, ele se inclinou e olhou para baixo, a fim de garantir que não havia ninguém na porta da frente, então soltou um suspiro de surpresa. Deitado no que parecia ser uma cesta de vime havia um embrulho que se contorcia em um cobertor. E era definitivamente de onde o choro estava vindo. James fez o sinal da cruz. Bebês eram esporadicamente deixados na porta do presbitério em Dublin, mas era o padre O’Donovan, seu superior na época em que era diácono, quem sempre lidava com aquelas situações. Quando James lhe perguntava para onde os bebês eram levados, ele dava de ombros. – Ao orfanato do convento local. O Senhor ajuda a todos quando chegam lá – acrescentava ele. Com Dublin sendo uma cidade tão grande, não era de surpreender que tais coisas acontecessem quando as moças se metiam em apuros. Mas ali, em uma comunidade tão unida, onde James já percebera, nos seis meses que vivia ali, que todos sabiam da vida dos outros mais do que das próprias, ele ficou surpreso. Vestiu-se às pressas, enfiando um grosso suéter para afastar o frio do inverno de West Cork, em seguida repassou mentalmente seus paroquianos. Sim, havia várias jovens grávidas, mas todas eram casadas e estavam resignadas com a perspectiva da chegada de mais um filho. Ele abriu a porta do quarto, atravessou o corredor e desceu, enquanto sua mente percorria as filhas adolescentes da paróquia. – Deus do céu! De onde vem esse berreiro? James olhou para trás e viu seu amigo Ambrose parado no topo da escada, usando um pijama xadrez. – Um bebê foi deixado na porta, lá fora. Vou trazê-lo para dentro. – Vou pegar meu roupão e já desço – disse Ambrose, enquanto James soltava a tranca e abria a porta da frente. A boa notícia era que, pela força dos berros, pelo menos já sabia que não encontraria uma criança azul e sem vida quando levantasse o cobertor. Tremendo no vento frio, ele pegou a alça do cesto e o levou para dentro. – Ora, ora, esse pacote pode ser ainda mais interessante do que os de livros que me mandam de Hatchards – brincou Ambrose, enquanto os dois espiavam dentro do cesto. – Vamos ver – disse James, respirando fundo e se preparando para descobrir o bebê, rezando para que a pobre criatura não fosse tão desfigurada que a mãe resolvera abandoná-la. – Que coisa – comentou Ambrose, enquanto ambos olhavam para o que parecia, até mesmo para dois amadores, um bebê recém-nascido perfeito, ainda que de rosto vermelho. – Será que é menina ou menino? – perguntou ele, apontando para o pano que cobria a criança. – Vamos descobrir, mas antes vamos levá-lo para o meu escritório e acender o fogo. As pontas de seus dedinhos parecem azuis. Enquanto James colocava o cesto no tapete em frente à lareira e acendia o fogo, Ambrose continuou a olhar para o bebê, cujos gritos haviam agora diminuído e pareciam um estranho ganido de descontentamento. – O umbigo me parece muito estranho – observou Ambrose. – Tem um talo cinza e sangrento saindo dele. – Você não se lembra de suas aulas de biologia? – indagou James. – Isso é o que resta do cordão umbilical, que liga a mãe ao bebê. – Ele se ajoelhou perto do cesto. – Parece que esta coisinha nasceu há poucas horas. Vamos ver se é menina ou menino. – Aposto que é menina. Basta olhar para esses olhos. James olhou e, embora o rostinho estivesse vermelho do choro, os olhos eram enormes – e de um azul profundo, emoldurado por longos cílios escuros. – Acho que você tem razão – concordou o padre, enquanto puxava timidamente o pano úmido e sujo para revelar que, sim, o bebê no cesto era uma menina. – Que pena, agora você não pode dar a ela o nome de Moisés – brincou Ambrose. – Você acha que é uma recémnascida por causa do cordão umbilical, mas ela é bem grande. Não que eu seja especialista nessas coisas... James olhou para os braços e as coxas gordinhos – as pernas dos bebês sempre o faziam pensar nas de um sapo – e assentiu. – É verdade, essa criança parece mais bem-nutrida do que a maioria dos ratinhos magros que batizo por aqui. Você pode cuidar dela enquanto procuro um pano na cozinha para colocar no lugar dessa coisa suja? – Claro. Eu sempre amei bebês, e eles gostam de mim também – afirmou Ambrose. – Calma, pequena. – Ele tentou apaziguar a criança quando James saiu. – Você está segura conosco agora. Quando James voltou, tendo recorrido ao ferro de passar e rasgado um dos lençóis imaculadamente lavados da Sra. Cavanagh, a bebê estava olhando para Ambrose, enquanto ele murmurava suavemente para ela. James riu ao ouvir. – Você está falando em latim com ela? – Claro que sim. Nunca é cedo demais para começar a aprender, certo? – Se isso a mantiver quieta e calma enquanto eu lido com a outra ponta das coisas, você pode usar qualquer linguagem que quiser. Precisamos levantá-la e colocá-la na toalha, para que eu possa limpá-la. – Deixe-me segurá-la... James assistiu com verdadeira surpresa quando Ambrose segurou a cabeça da bebê com uma das mãos e enfiou a outra sob suas costas para em seguida colocá-la suavemente sobre a toalha que James tinha aberto perto do fogo. – Parece que você tem um dom com crianças – comentou James. – E por que não teria? – Verdade. Agora vou fazer o meu melhor para criar uma fralda, embora seja minha primeira vez. Enquanto Ambrose continuava a conversar com a bebê – dessa vez em grego –, James lutou para limpar e, em seguida, prender o pedaço de lençol em torno do bumbum gordinho da criança. – Vai ter que servir – disse ele, amarrando um nó logo abaixo do umbigo da pequena. – Havia algum bilhete na cesta? – indagou Ambrose. – Ou alguma pista quanto a quem pode ser a mãe? – Acho improvável, mas... – James sacudiu o cobertor que viera com a bebê e um pequeno objeto caiu no chão. – Meu Deus. James arquejou enquanto se inclinava para pegá-lo. – Isso é um anel? – disse Ambrose. Juntos, eles foram até o abajur na mesa do escritório para inspecionar o item na palma da mão de James. Era de fato um anel, feito na forma incomum de uma estrela, com esmeraldas em torno de um diamante central. – Eu nunca vi nada parecido – sussurrou Ambrose. – Tem sete pontas, e as esmeraldas são tão claras e vibrantes... Não pode ser bijuteria, James. Eu acho que as pedras são verdadeiras. – Sim. – James franziu a testa. – Seria de se imaginar que alguém que possui este tipo de anel pudesse criar a própria filha. Este anel trouxe mais perguntas que respostas. – Talvez ela seja de uma família rica, fruto de um amor proibido, e a mãe tenha tido que se livrar dela para não enfrentar a recriminação dos pais – sugeriu Ambrose. – Você obviamente tem lido muitos romances – caçoou James. – Pelo que sabemos, o anel pode ser roubado. Seja qual for a procedência, vou mantê-lo em um lugar seguro por enquanto. Ele tirou da gaveta da escrivaninha uma pequena chave e a bolsa de couro onde guardava a cruz de prata que seus pais tinham lhe dado no dia de sua Confirmação. Colocou o anel dentro, junto com a cruz, e foi até a estante de livros para destrancar um armário sob uma das prateleiras. – É aí que você esconde o seu uísque da Sra. Cavanagh? – Ambrose riu. – Isso e outras coisas que eu não quero que ela encontre – confirmou James, enfiando a bolsa de couro no armário e o trancando. – Bem, uma coisa é certa – disse Ambrose, olhando para a bebê, que agora estava deitada calmamente sobre a toalha –, parece que nossa garotinha é realmente muito especial. Ela está se mostrando muito alerta para um recém-nascido. No entanto, as atenções afetuosas de Ambrose pararam de funcionar quando a bebê percebeu que sua barriga permanecia vazia e começou a berrar de novo. Ambrose a pegou no colo e a balançou suavemente, em vão. – Esta menina precisa do leite da mãe, ou do leite de qualquer uma, na verdade – constatou Ambrose. – E isso é algo que nenhum um de nós pode fornecer. O que vamos fazer agora, James? Sequestrar a vaca mais próxima e enfiar a teta em sua boca? – Não tenho ideia. – James suspirou, impotente. – Vou precisar enviar uma carta ao padre Norton, em Bandon, e ver o que ele sugere. – Eu não estou falando do que vai acontecer com ela no futuro, estou me referindo a agora! – Ambrose levantou a voz. – Ah, bebê, como pode um ratinho minúsculo fazer tanto barulho?! Quando os dois estavam à beira do pânico, houve uma batida à porta do escritório. – Quem pode ser a esta hora da manhã? – perguntou Ambrose. – Deve ser Maggie, que me ajuda com a casa no dia de folga da Sra. Cavanagh. Um rosto pálido e sardento, com grandes olhos cor de esmeralda, apareceu na fresta da porta. A moça tinha belos cabelos ruivos caindo em cachos sobre os ombros, presos para trás por um lenço. – Olá, padre... – Entre, Maggie, entre – convidou James. – Como você pode ver, temos uma convidada. Ela foi deixada em um cesto na porta durante a noite. – Ah, não! Os olhos de Maggie se arregalaram em choque e surpresa. – Você... você conhece alguma jovem local que pode ter, hum, bem... – Se metido em apuros? – concluiu ela. – Sim. Maggie franziu a testa enquanto pensava no assunto e, pela primeira vez, James viu a sombra de rugas em seu rosto jovem – rugas criadas pela vida dura que levava. Ele sabia que a moça tinha quatro pequenos em casa e que estava grávida de novo. Percebeu também que a pele ao redor de seus olhos estava avermelhada, como se ela tivesse chorado recentemente, e havia manchas escuras de exaustão sob eles. – Não, padre, eu não consigo pensar em ninguém. – Tem certeza? – Absoluta – respondeu ela, olhando-o diretamente nos olhos. – Esse bebezinho precisa mamar – disse ela, repetindo o óbvio. – E esse umbigo precisa ser cuidado. – Você conhece alguém das redondezas que esteja amamentando? E que poderia alimentar mais um, só até encontrarmos um lugar para ela ficar? Isto é, se não conseguirmos encontrar a mãe dela. Maggie encarou James por um momento. – Eu... – Sim, Maggie? – Ah, padre... James a viu levar as mãos ao rosto. – Meu bebê passou para as mãos de Deus ontem, então... – Maggie, eu sinto muito. Eu podia ter ido dar a extremaunção. Por que você não me contou? Quando Maggie ergueu os olhos novamente, James viu medo em seu rosto. – Por favor, padre, eu devia ter contado, mas eu e John... não tínhamos como pagar um enterro de verdade. Ela veio um mês antes, e ela... ela deu seu último suspiro ainda dentro de mim, então... – Ela respirou fundo, segurando os soluços. – Nós... a enterramos junto com o irmão que morreu da mesma forma, sob o carvalho, em nosso campo. Perdoe-me, padre, mas... – Por favor. – Os ouvidos de James estavam começando a doer com a gritaria da bebê e a tristeza do que Maggie tinha acabado de lhe contar. – Não precisa pedir meu perdão ou o de Deus. Eu irei à fazenda e rezarei uma missa para a alma da sua bebezinha. – O senhor faria mesmo isso? – Claro que sim. – Padre, não sei como lhe agradecer. O padre O’Malley teria dito que a alma da bebê está condenada ao inferno por ela não ter sido enterrada em solo sagrado. – E eu lhe digo, como o mensageiro Dele na Terra, que a alma da bebê com certeza não está condenada. Mas Maggie... você está dizendo que você tem... leite? – Sim, padre. O leite desce como se a criança estivesse aqui, esperando por ele. – Então... você daria de mamar a esta criança? – Com certeza, mas eu ainda não acendi as lareiras, nem o fogão, ou... – Não se preocupe com nada disso. Garanto que podemos nos virar enquanto você cuida da bebê, não é, Ambrose? – É claro que sim. Aqui está. – Ambrose entregou a bebê a Maggie. Ele percebeu o olhar arrasado que a moça lançou à criança, e isso quase partiu seu coração. – Vou levá-la para a cozinha e amamentá-la, então – disse ela, se recompondo. – Não, a cozinha está congelando – retrucou James. – Sente-se lá na poltrona perto do fogo. Avise quando terminar. – Tem certeza, padre? Eu... – Absoluta. Vamos resolver tudo, certo, Ambrose? – É claro. Leve o tempo que precisar, minha querida. Os dois homens deixaram o escritório. Ambrose se sentou em uma cadeira na cozinha, enrolado em um cobertor, enquanto James acendia o fogão e esperava a chaleira ferver para que pudessem tomar uma xícara de chá. – Você está bem, meu amigo? – perguntou James. – Está me parecendo muito pálido. – Confesso que estou chocado com os acontecimentos da manhã. Não só com a chegada de um bebê à sua porta, mas a jovem Maggie... – Ambrose suspirou e balançou a cabeça. – Ela enterrou seu recém-nascido ontem, e ainda assim está aqui, no trabalho, apesar de provavelmente esgotada tanto física quanto emocionalmente. – Sim. – James aqueceu as mãos no fogão, desejando que a chaleira fervesse mais depressa. Ele também precisava de um alento, que só poderia vir de uma xícara de chá quente e doce. – Aqui a vida humana é barata, Ambrose. Você e eu somos muito privilegiados, cada um à sua maneira. Na minha igreja em Dublin, eu estava protegido pelo meu sacerdote, enquanto aqui estou na linha de frente. E se eu quiser ficar e sobreviver, preciso entender os hábitos do rebanho ao qual sirvo. E esse rebanho é, em sua maioria, pobre e luta para sobreviver. – Os acontecimentos dessa manhã deveriam abalar até mesmo a sua fé em Deus. – Eu vou aprender, e espero ser capaz de levar algum alento para aqueles em situações que sequer consigo imaginar. Isso não abala a minha fé, Ambrose, mas a fortalece, porque eu sou as mãos de Deus aqui na Terra. E o pouco que eu puder fazer por eles, eu farei. A chaleira finalmente deu um apito fraco e James derramou água quente sobre as folhas de chá. – E quanto ao bebê? Aquela preciosa nova vida? – Como eu disse, vou enviar uma mensagem ao padre Norton, ele deve conhecer alguém do orfanato local, mas... – James balançou a cabeça. – Uma vez fui enviado para dar a extrema-unção a uma criança que estava morrendo de tuberculose no orfanato do convento, perto da minha antiga paróquia de Dublin. Era um lugar terrível, não posso negar. Três bebês ocupando um só berço, com fraldas imundas, cheios de piolhos... – Talvez os casais devessem parar de praticar a atividade que gera bebês – disse Ambrose enquanto James colocava uma caneca de chá na frente dele. – Não acho que essa seja a solução – respondeu James. – É um instinto humano natural, como você bem sabe. E a única forma de alívio que alguns desses casais jovens e pobres possuem. Houve uma batida tímida à porta da cozinha. – Entre – ordenou James, e Maggie apareceu com o bebê dormindo em seus braços. – Ela mamou bastante e está quieta agora. Eu estava pensando, padre, se posso pegar um pouco de sal da despensa e um pouco de água quente para lavar o cordão umbilical, para que não infeccione. – É claro que pode. Sente-se, Maggie, e eu vou pegar uma tigela e preparar um pouco de água salgada. – Obrigada, padre. – Ambrose vai lhe servir um chá, Maggie. Você está muito pálida, e faz apenas um dia que deu à luz; isso sem falar na dor de perder a criança. Você não deveria estar aqui. – Ah, não, padre, estou bem e saudável, e sou capaz de trabalhar hoje. – Como os seus filhos estão lidando com a perda? – perguntou James. – Eles ainda não sabem. Quando senti que o bebê estava vindo e que algo estava errado, pedi à minha mais velha, Ellen, que os levasse para a casa dos nossos vizinhos. Eu... ainda não fui buscá-los para dar a notícia, porque vim para cá trabalhar. Já vou retomar a limpeza, padre. – Por favor, descanse um pouco – pediu Ambrose, colocando uma caneca de chá na frente da pobre mulher, enquanto James ia pegar o sal na despensa. – Por que você não me dá a bebê enquanto toma o chá? – Estou bem, senhor, de verdade – reiterou Maggie. – Mesmo assim, eu gostaria de segurá-la. Ambrose tirou a criança dos braços de Maggie, sentou-se e embalou-a. – Ela é muito bonita – comentou ele, olhando para o bebê adormecido. – É mesmo, senhor, e grande também. Mais gordinha do que qualquer um dos meus. Deve ter sido um parto difícil para a mãe. – Você não tem ideia de quem possa ser essa mãe? – Nenhuma, senhor. E eu conheço cada grávida por essas bandas. – Então o bebê deve ter vindo de fora da vila? – concluiu Ambrose. – Eu acho que sim. James voltou com o sal e uma bacia, e seguiu as instruções de Maggie para pegar um pouco de água quente da chaleira e misturá-la à água fria. Ele ficou espantado quando Ambrose insistiu em segurar a bebê para Maggie enquanto ela cuidava do cordão umbilical. – Pronto, está limpo agora. Vai secar em uma semana, mais ou menos, e depois cair – disse ela, enrolando o bebê no cobertor. – Agora, se não se importam, vou continuar o meu trabalho ou a Sra. Cavanagh vai reclamar comigo. Maggie fez um pequeno aceno e saiu da cozinha. – Ela deveria estar na cama descansando, depois de perder uma filha. Ela tem medo de perder o emprego aqui, não é? E da Sra. Cavanagh – observou Ambrose. – Tem, sim, e nós dois vamos fazer de tudo para que descanse hoje. É claro que os poucos xelins que ela recebe uma vez por semana podem fazer a diferença entre sua família ser alimentada ou passar fome. – Quem será que cuida dos filhos dela quando ela está aqui? – Tenho até medo de pensar, Ambrose. – James estremeceu. – Eles provavelmente cuidam um dos outros. – Eu não sei como ela consegue segurar esta bebê perfeita e saudável e dar de mamar a ela com o leite destinado à própria filhinha morta. É tanta coragem que... James viu lágrimas nos olhos do amigo. Ele nunca tinha visto Ambrose chorar, nem mesmo quando implicavam cruelmente com ele na escola. – Será que um orfanato é a única alternativa para esta pobre criança inocente? – Ambrose olhou para James. – Quero dizer, você viu aquele anel, talvez pudéssemos descobrir a quem pertence, rastrear a família dela... Ou, se não conseguirmos, há mulheres sem filhos, loucas para adotar. Um amigo inglês estava me contando que casais americanos vêm para adotar dos orfanatos daqui. – Bem, se irlandeses são bons em alguma coisa, é em dar à luz crianças saudáveis. Quer me dar a bebê? Posso colocá-la lá em cima, na minha cama, e tenho certeza de que Maggie pode amamentá-la novamente mais tarde. – O que você vai fazer agora, James? – Vou falar com o padre Norton depois da missa para descobrir o protocolo dessas coisas por aqui. – James tirou a bebê dos braços do amigo. – Pronto, vou levá-la embora antes que você mesmo a adote. Com um sorriso triste, ele saiu da cozinha. E 36 nquanto James estava na igreja de Timoleague, realizando a missa matinal, Ambrose saiu para uma caminhada, descendo a colina até a baía de Courtmacsherry. As águas estavam paradas e a brisa era suave, então ele seguiu caminhando pela orla do mar. Era um dia de novembro claro e brilhante – do tipo que Ambrose amava – e, embora não conseguisse entender como a fé em um ser invisível conseguira atrair a sua alma gêmea para aquela parte isolada da Irlanda, ele de vez em quando era capaz de apreciar sua beleza natural. Desde o dia em que conhecera James – que aos 11 anos já era alto e quase maldosamente bonito –, Ambrose sabia que aquele menino que se tornara um belo homem havia prometido sua vida a Deus. Ele se lembrava de estar sentado no banco duro e desconfortável da capela do colégio Blackrock, sempre com um livro na mão a fim de ler escondido durante todo o interminável canto fúnebre de Evensong. Às vezes, olhava para James, sentado ao seu lado no banco, a cabeça inclinada em oração e um olhar que ele só podia descrever como êxtase. Ambrose sabia que jamais poderia falar abertamente sobre a sua falta de crença espiritual; afinal, ele estudava em uma escola católica e seus professores eram monges devotos. Os Padres do Espírito Santo, a ordem que dirigia a escola, estavam preparando seus alunos para se tornarem missionários na África Ocidental. Mesmo tão jovem, a simples ideia de viajar pelos mares para uma terra desconhecida já o aterrorizava. Quando perdia os óculos, Ambrose caía de imediato em um mundo turvo e indecifrável. Ao contrário de James, cuja constituição podia resistir aos dias mais úmidos e frios no campo de rúgbi, Ambrose provavelmente teria que ser internado em um hospital por dias, com problemas pulmonares, depois de uma única partida. – Seja homem – dizia seu pai, especialmente porque Ambrose era o herdeiro de uma dinastia anglo-irlandesa, ou pelo menos do que restava dela. A família já tinha sido dona de metade de Wicklow, uns três séculos antes; eles eram patrões dos católicos pobres. Mas, por causa do trabalho filantrópico de seus antepassados, ajudando os arrendatários e suas fazendas, a família passou a ser amada. Lorde Lister passara essa ideologia para o filho, que dera um passo adiante e, em seu testamento, deixara a terra de herança para seus arrendatários. Essa atitude deixou as gerações futuras dos Listers com apenas uma vasta mansão e poucos meios de sustentá-la. No entanto, tal generosidade salvara o lugar de ser incendiado, como tantas outras casas grandes tinham sido durante a Guerra da Independência. E seu pai morava lá até hoje. Ambrose era tecnicamente um “honorável”, pois era herdeiro da dinastia, e recebera um anel de sinete de ouro em seu vigésimo primeiro aniversário, para marcar sua ancestralidade nobre. Seu pai raramente usava o dele e brincava que só o faria se precisasse impressionar algum inglês que o considerasse um operário irlandês. Ambrose sempre ria quando o pai voltava da Inglaterra e dizia isso, porque, apesar de tudo, ele tinha um sotaque inglês bem forte. Ambrose não ficaria surpreso de saber que a Lister House estava hipotecada. Aos 11 anos, ele já estava certo de que a dinastia Lister estava condenada a terminar com ele, pois nunca se casaria. Sua mãe tinha morrido jovem, deixandolhe um fundo de investimento substancial, herdado da família dela. Com o pai de Ambrose ainda vivo e bebendo o que restara da herança, ela havia tomado precauções para proteger o filho. Ambrose tinha sonhos de vender a Lister House para alguma família irlandesa nouveau-riche que tivesse ganhado dinheiro com a guerra e comprar um pequeno apartamento aconchegante, perto da Trinity College, onde poderia se cercar de livros e, o mais importante, sentir-se aquecido... O que definitivamente não estava acontecendo no momento. – Ah, como eu odeio o frio... – resmungou, voltando para a aldeia, com suas belas casas em tom pastel, muitas das quais eram sustentadas pelas lojas que os donos haviam estabelecido no primeiro andar. Como sempre, a Igreja Católica assomava sobre a aldeia – não havia uma alma em Timoleague ou nos arredores que perdesse a missa de domingo. Muitas vezes, disse James, só sobrava espaço em pé, apesar de a igreja acomodar pelo menos trezentas pessoas. Ambrose então olhou para a esquerda, para a igreja protestante, que era bem menor, construída logo abaixo da enorme amplitude da Igreja Católica da Natividade da Virgem Maria. Ali, com certeza, uma guerra profana tinha acontecido e ainda era latente. Desde que a Irlanda do Norte fora separada do resto da nova República da Irlanda, havia um sentimento de raiva porque britânicos protestantes administravam parte da ilha. Entretanto, não era o ato de Comunhão um dos pilares das duas comunidades, católica e protestante? – Querido James – murmurou Ambrose –, eu o amo demais, mas temo que você tenha se casado com uma promessa vazia. No entanto, Ambrose sabia que, assim como os monges franciscanos que haviam construído a Abadia de Timoleague, oitocentos anos antes, seu amado amigo queria fazer o bem enquanto estivesse sobre a Terra. Quando pensou naquele precioso bebê recém-nascido, na sensação que experimentara ao segurar a menina em seus braços, sabendo que nunca seguraria um dos seus, Ambrose sentiu uma dor no coração. Virando-se e preparando-se para o restante da caminhada até a colina, ele voltou para a casa do padre. – Como está a pequena? – perguntou James a Maggie, que colocava a mesa para o almoço. – Está bem, obrigada, padre. Eu a amamentei de novo e ela está na cama, dormindo. – E você, Maggie? Deve estar exausta. – Estou muito bem, padre – respondeu Maggie, embora seu rosto contasse outra história. – O senhor falou com o padre em Bandon? – Não, acabei de chegar da missa. Você sabe onde é o orfanato mais próximo? – Acredito que fica em Clonakilty. Tem um convento lá, e eles aceitam bebês como a nossa... a sua... – Maggie corou. James percebeu que ela estava quase chorando enquanto mexia a sopa no fogão. Ela abriu o forno e tirou um tabuleiro com algo de cheiro delicioso. – Eu fiz um bolo, padre. Encontrei algumas frutas secas na despensa e pensei que o senhor podia comê-lo com uma xícara de chá esta tarde. – Obrigado, Maggie. Não como um bolo desses desde que morava em Dublin. Ah, deve ser Ambrose! – exclamou ao ouvir a porta da frente se abrir e se fechar. – Por favor, sirva para nós dois. Arfando, Ambrose entrou na cozinha. – É uma subida íngreme até aqui – comentou James. – Você está bem, meu amigo? – Sim, só não estou acostumado a andar pelas colinas, só isso – respondeu ele, sentando-se e bebendo um pouco de água do copo que Maggie havia colocado sobre a mesa. – Como foi a missa? – Bem cheia para uma segunda-feira de manhã. E havia muitos para se confessar depois. – Deve ser por conta de toda a bebida ingerida no Dia Santo. Ambrose sorriu quando Maggie colocou uma tigela de sopa à sua frente. – Tem também pão e manteiga para os dois. Vou continuar com minhas tarefas agora, se estiverem satisfeitos. – Obrigado, Maggie. O cheiro está delicioso. – É só nabo e batata, mas eu acrescentei uma maçã da despensa. Sempre acho que dá um toque de doçura. Com um aceno, Maggie saiu da cozinha. – Isto aqui está tão gostoso quanto bonito – comentou James, e soprou outra colher de sopa. Em seguida, ele cortou um pedaço grosso de pão caseiro e o encheu de manteiga. – Você quer pão, Ambrose? – De fato. E a sopa está boa mesmo. Que pena que você não possa deixar a moça substituir a Sra. Cavanagh por completo. – Bem que eu gostaria. – James suspirou. – Mas haveria tumultos na hierarquia, acredite. Ela cuidou do meu antecessor por muitos anos. – Maggie também é muito bonita, apesar de ser tão magra – comentou Ambrose. – Ouça, caro amigo, eu estive pensando enquanto estava caminhando. – Isso costuma ser perigoso – retrucou James, sorrindo. – Por alguma razão, eu estava pensando na genealogia da minha própria família, voltando a lorde Henry Lister, conhecido como o Grande Filantropo. Ele quase faliu os Listers por sua generosidade. Também estava pensando naquela bebezinha dormindo lá em cima. E em como você sabe muito bem que o melhor que ela pode esperar, se sobreviver à infância, é uma educação braçal, que só a prepararia para um futuro no qual faria algum trabalho de baixa remuneração. – E...? – Bem, eu tenho dinheiro, James. E como sei que nunca terei uma família própria... – Você não pode afirmar isso. – Posso – retrucou Ambrose, com firmeza. – Estou plenamente consciente de que não posso mudar o mundo, muito menos salvá-lo, mas talvez um pequeno ato de caridade possa mudar pelo menos uma vida. – Entendo. – James tomou sua sopa, pensativo. – Isso significa que você está pretendendo adotar a bebê? Você pareceu ter criado um vínculo com ela essa manhã. – Por Deus, não! Eu não saberia por onde começar. – Ambrose riu. – No entanto, acho que com a minha ajuda nos bastidores, uma solução para este quebra-cabeça parece estar bem debaixo do nosso teto. – Que é exatamente qual? – Temos uma mulher que acabou de perder um bebê amado. E uma órfã recém-nascida que precisa de uma mãe e de seu leite. A única coisa que as impede de se unirem é o dinheiro. E se eu sugerisse a Maggie cobrir todos os custos do bebê e acrescentar um pouco para ajudá-la e à sua família? O que você acha? – Não sei o que pensar, para ser honesto. Você está dizendo que vai pagar Maggie para adotar o bebê? – Em resumo, sim. – Ambrose, isso soa como suborno. Para começar, nem sabemos se ela ia querer o filho de outra pessoa. – O olhar dela enquanto cuidava da criança me diz que sim. – Talvez, mas Maggie também tem um marido, que pode muito bem ter outra visão. – Você o conhece? Como ele é? – Pelo que vejo dele na missa, John O’Reilly é um homem bom, temente a Deus. Nunca ouvi fofocas sobre ele ficar visitando os bares da vila, e, acredite, eu teria ouvido, se acontecesse. Mesmo assim, talvez ele não esteja disposto a criar a filha de um homem desconhecido. – Então vamos falar com ele. E o restante da família? Quais são suas circunstâncias? – Eles têm a mais velha, Ellen, que tem 10 anos, um filho, John, que tem 8, depois duas meninas de 6 e 2. Ouvi dizer que Maggie e John se casaram por amor, contra a vontade de seus pais, e que são apaixonados um pelo outro. Ambrose sorriu. – A sorte e o amor favorecem os bravos, certo? – Pode ser, mas não ajuda a colocar comida na mesa. A família possui alguns porcos e galinhas, algumas vacas e uma pequena terra. Eles vivem em uma cabana escura e apertada, sem eletricidade ou água corrente. Ambrose, eu não sei se você tem dimensão da pobreza que algumas famílias por aqui são obrigadas a enfrentar. – James, eu sei que sou privilegiado, mas não sou cego para as privações dos outros. Acho que, por mais pobre que seja, a família O’Reilly tem os fundamentos necessários para dar a essa criança um futuro estável, com uma pequena ajuda minha. E devemos agir rápido. Maggie disse esta manhã que não contou a ninguém sobre a morte da criança, e ainda não buscou os filhos na casa dos vizinhos. Se formos rápidos, podemos preparar tudo sem que ninguém saiba. Como eu disse, estou pronto para pagar. O que for preciso – acrescentou Ambrose com firmeza. James analisou o amigo com cuidado. – Você vai ter que me perdoar, mas sua conversa de um ancestral filantrópico não está conseguindo me convencer de sua repentina urgência em fazer um ato de caridade. – Os Padres do Espírito Santo podem nunca ter me convencido a acreditar em Deus, católico ou não, mas a simples inocência daquele bebê recém-nascido dormindo lá em cima despertou mais da minha caridade do que eles jamais conseguiriam fazer. Sinto que não fiz nada particularmente bom nos meus 26 anos de vida, ao contrário de você, que faz o bem todos os dias. E eu quero ajudar, James, é simples assim. – Ah, Ambrose. – James suspirou. – Você está pedindo muito de mim, na minha posição aqui como um padre. O bebê deve ser legalmente registrado em minhas notas da igreja como tendo sido abandonado e... – Será que estaríamos incorrendo na ira do Senhor se tentássemos dar uma vida melhor para ela do que a oferecida por meio da Igreja? – Quem disse que vai ser melhor? Maggie e seu marido John são muito pobres, Ambrose. Essa nova filha vai ser uma de tantos irmãos que eles podem nem ter o suficiente para comer. Ela vai ter que trabalhar duro na fazenda e não vai receber uma educação diferente da que receberia se fosse para o orfanato. – Mas ela será amada! Ela terá uma família! E vou lhe dizer, como filho único, com um pai que mal prestava atenção em mim: eu com certeza preferiria ter tido uma vida mais difícil com uma família ao meu redor. Ainda mais porque você... e eu... estaremos aqui para olhar por ela enquanto ela cresce. James encarou o amigo e viu lágrimas em seus olhos. Em todo o tempo que o conhecia, ele nunca tinha visto Ambrose falar do pai daquela maneira. – Posso tirar algum tempo para pensar, Ambrose? Maggie só deve sair daqui às seis horas, depois de servir a nossa ceia. Preciso ir à igreja e rezar sobre o que você sugeriu. – Claro. – Ambrose limpou a garganta e tirou um lenço do bolso da calça para assoar o nariz. – Desculpe, James. A chegada daquele bebê me desconcertou bastante. Eu entendo que estou pedindo muito de você. – Estarei de volta a tempo para o jantar e para uma fatia do delicioso bolo de Maggie. Com isso, James fez um sinal com a cabeça e saiu da cozinha. Como sempre acontecia quando havia alguma crise, Ambrose foi para seu quarto e tirou seu volume da Odisseia de Homero de sua velha mala. A profunda sabedoria de centenas de anos o consolou. Ao voltar ao primeiro andar, ele pediu que Maggie descansasse perto do fogo da cozinha enquanto cuidava da bebê e preparou para ela uma xícara de chá quente. Entrou no escritório de James, acendeu o fogo e se sentou na poltrona de couro para ler. Mas nem mesmo as palavras de Homero conseguiram lhe trazer algum conforto. Com o livro aberto no colo, ele questionou seus próprios motivos para ajudar aquela criança. Quando entendeu completamente a resposta, ele se perguntou: mesmo que os motivos fossem intrinsecamente egoístas, o resultado ainda não seria bom? Sim, ele estava convencido de que seria. A criança precisava de um lar amoroso e talvez um estivesse disponível. E não havia nada moralmente errado nisso. – Como foram as suas orações? – perguntou ele, quando James apareceu no escritório uma hora depois. – Tivemos uma boa conversa, obrigado. – Você chegou a uma decisão? – Acho que devemos primeiro falar com Maggie. Se ela e o marido forem contra a ideia, então não haverá decisão a tomar. – Ela está descansando perto do forno, com o bebê. Eu insisti. – Vou chamá-la. James saiu do escritório e Ambrose ficou olhando para o fogo. Pela primeira vez na vida, ele também sentiu vontade de rezar. James voltou trazendo Maggie. Ela havia usado a outra metade do lençol rasgado para fazer um carregador para que a menina pudesse ficar deitada contra seu peito. – Eu fiz alguma coisa errada, padre? – perguntou ela, quando James lhe ofereceu a poltrona perto do fogo. – O bebê estava agitado e eu precisava preparar o jantar, então peguei o lençol e... – Maggie, por favor, não se preocupe. Ambrose disse para você descansar – interveio James, enquanto os dois homens olhavam para as mãozinhas e pezinhos para fora do carregador. – Bem – continuou ele, enquanto o bebê emitia gemidos parecidos com os de um gatinho –, é só que... é melhor eu deixar Ambrose explicar. – Eu sei que você acabou de perder seu próprio bebê, Maggie, e que era uma menina – começou Ambrose. – Sim, senhor, era. – Sinto muito pelo seu sofrimento. E aqui está você, amamentando um recém-nascido. Lágrimas brilharam nos olhos de Maggie. – Ela é muito mais pesada do que meu pobre bebê era. Mary... eu e John tínhamos escolhido esse nome, antes de ela nascer... era só uma coisinha... Ambrose entregou um lenço a Maggie e a deixou se recompor antes de prosseguir: – Bom, todos sabemos onde essa pobre criança vai acabar se o padre O’Brien entrar em contato com o padre Norton – disse ele. – Ouvi dizer que orfanatos são lugares horríveis – concordou Maggie. – Teve um surto de sarampo no de Clonakilty há pouco tempo, e muitos dos pobres bebês morreram. – Maggie olhou para a bebê, em seguida acariciou seu rosto com um dedo. – Mas o que se pode fazer? – Você disse que não contou a mais ninguém sobre a morte da pobre bebezinha Mary – interrompeu James, para confirmar. – Não, padre. – Ela engoliu em seco. – Como eu falei, tudo aconteceu tão de repente, e decidimos que era melhor não contar nada porque não podíamos pagar o velório. Nós não somos pagãos, eu juro. Nós rezamos sobre o corpinho dela assim que a enterramos e... – Eu entendo, Maggie, e tenho certeza de que vocês não são os únicos pais a fazer isso por essas bandas. – O negócio é o seguinte – propôs Ambrose. – Eu estava pensando se você... e seu marido, é claro... estariam dispostos a adotar essa menina. – Eu... É claro que eu a tomaria como minha, se pudesse, mas... – Maggie corou até as raízes de seus lindos cabelos ruivos. – Já temos quatro crianças famintas e já é difícil do jeito que está... – Maggie, por favor, não fique nervosa – consolou-a James, vendo seu constrangimento e angústia. – Ouça o que o meu amigo Ambrose tem a dizer. Essa ideia foi dele, não minha, mas eu disse que ele podia pelo menos apresentá-la a você. Ambrose limpou a garganta. – Entendo a sua situação financeira e, se você e seu marido considerarem adotá-la, eu ficaria mais do que feliz em cobrir qualquer gasto da bebê até que ela chegasse aos 21 anos. Isso inclui sua educação, se ela quiser ir mais longe do que o ensino médio. Esse valor seria pago em uma quantia fixa a cada cinco anos. Eu também pagaria uma quantia extra, agora, pelo seu trabalho, além de sua discrição. Seus amigos e familiares devem acreditar que essa é a bebê que você estava esperando. Caso contrário, colocaria o padre O’Brien em uma posição difícil, por não relatar sua adoção pelos canais corretos. Agora, esta é a soma que estou preparado para lhe oferecer para cobrir os custos da criança pelos primeiros cinco anos de sua vida. – Ele entregou a Maggie uma folha de papel na qual tinha escrito um número. Ele esperou até que ela visse e lhe entregou outra folha. – E este é o valor que pretendo pagar a você e ao seu marido imediatamente pelo seu trabalho e por quaisquer extras ao longo do caminho. Tanto James quanto Ambrose observaram Maggie enquanto ela decifrava os números. Passou pela mente de James que talvez ela não soubesse ler, mas o olhar de choque no rosto da mulher ao encarar Ambrose foi suficiente para mostrar que ela sabia. – Meu Deus do céu! – Maggie colocou a mão na boca enquanto olhava para James. – Perdoe-me, padre, por falar o nome d’Ele em vão, mas estou... bem, estou chocada. Esses números, será que o senhor não acrescentou um zero a mais por engano? – Não, Maggie. Esses são os valores que estou disposto a pagar para você ficar com a menina. – Mas, senhor, a primeira quantia é mais do que poderíamos pensar em ganhar em cinco anos ou mais! E a segunda, bem, poderíamos começar a construir uma nova casa ou comprar mais alguns acres de terra... – É claro que você deve consultar seu marido, explicar o que eu estou sugerindo. Se ele concordar, posso ir ao banco da vila amanhã e pagar o dinheiro na íntegra. Será que ele estaria em casa agora? – Deve estar no curral de ordenha, mas sei que ele vai pensar que eu enlouqueci ao ver esses números. – Tudo bem. Então por que você não vai para casa agora, explica a ele o que Ambrose propôs e, se ele quiser, você o traz aqui para que eu possa confirmar tudo? – Mas o seu jantar, padre. Eu ainda não o servi nem cozinhei o repolho. – Tenho certeza de que podemos nos cuidar – disse James. – Se isso vier mesmo a acontecer, é vital que a bebê vá com você esta noite. Não queremos que a Sra. Cavanagh saiba de nada, não é? – Não, padre, não mesmo. Bem, vou para casa conversar com ele, se o senhor tem certeza. – Tenho certeza – garantiu Ambrose. – Vamos cuidar da bebê até que você volte. Ele se levantou e tirou a criança do carregador improvisado. Assim que Maggie saiu, os dois foram para a cozinha, levando a bebê, onde James tirou do fogão o que cheirava como um ensopado irlandês de carne. – Se você não fizer questão, não vou cozinhar o repolho. Será bom ter uma noite de folga dele. James olhou para seu amigo, cuja atenção estava focada na bebê enquanto a balançava suavemente em seus braços. – Posso perguntar quanto você ofereceu a ela? – indagou James. – Não pode. – Só estou perguntando porque existe a chance de eles levarem a bebê só por causa do dinheiro. – É claro que é o suficiente para incentivá-los a levar a bebê, e para Maggie colocar alguma carne naqueles ossos, mas não para enfeitá-la com roupas caras. E sim, dá para ajudá-los a ter uma vida um pouco mais tolerável. Esta menina é realmente muito bonita, não é? – Você está apaixonado, Ambrose. Talvez ela finalmente mude sua ideia de não filhos. – Impossível, mas eu gostaria de manter um olho nela enquanto estiver crescendo. E você também deve fazer o mesmo quando eu estiver em Dublin. – É claro, mas primeiro vamos ver se o marido concorda. Agora, venha e experimente esta comida. Está deliciosa. Uma hora depois, Maggie estava de volta com um jovem musculoso e bonito ao seu lado. Ele obviamente vestira suas melhores roupas para a ocasião e estava usando a boina que a maioria dos paroquianos de James usava para ir à missa. – Por favor, entre – convidou James, levando-os para dentro e fechando a porta depressa, feliz pelo terreno vazio de mais de 2 hectares ao redor da casa, que garantia que não tivesse vizinhos intrometidos. Ele os conduziu até o escritório, onde Ambrose colocou a bebê no mesmo cesto em que chegara. Ele sabia que o marido poderia achar estranho ver um homem cuidando de um recém-nascido. – Este é o meu marido, John – apresentou Maggie timidamente. – E este é meu amigo de Dublin, Ambrose Lister, um professor da Trinity College. – É um prazer conhecê-lo, senhor – murmurou John. James podia ver como ele estava desconfortável – muitos dos agricultores por ali passavam a maior parte do dia ao ar livre, cuidando da terra, e muitas vezes só falavam com gente de fora da família por alguns minutos após a missa no domingo. – Prazer em conhecê-lo, Sr. O’Reilly – disse Ambrose, observando que o corpo de John se retesou instintivamente ao ouvir seu sotaque inglês. – Vamos nos sentar? – sugeriu James. – John, você e Maggie podem se sentar perto do fogo. James foi ocupar a cadeira atrás de sua mesa, procurando se afastar de Ambrose e dos dois possíveis pais, porque era vital que o “acordo” não o incluísse. Ambrose se sentou na cadeira de madeira em frente. Ele viu marido e mulher acomodarem-se timidamente junto à lareira e olharem para baixo, para o cesto. – Por favor, Maggie, pegue a bebê, se quiser – disse Ambrose. – Não, senhor, vou deixá-la ali até... Bem, por enquanto. – Então, Sr. O’Reilly, Maggie deve ter lhe contado sobre a minha ideia – começou Ambrose. – Ela me disse, sim, senhor. – E o que você acha? – Preciso perguntar antes por que o senhor faria uma coisa dessas por essa bebê – perguntou John, sem encarálo. – Bem, Sr. O’Reilly, essa é uma ótima pergunta. E a resposta simples é que sou um solteirão que mora em Dublin, e tenho a sorte de receber uma renda que paga pelos meus estudos na Trinity College. Antes que me pergunte, eu sou católico – acrescentou Ambrose às pressas, percebendo que, embora John O’Reilly fosse um simples fazendeiro de West Cork, ele podia muito bem ter ouvido que a famosa Trinity College tinha sido originalmente fundada na fé protestante. Ambrose se preparou para continuar, sabendo que devia escolher as palavras com cuidado. – Desse modo, eu tenho boas condições. Quando esta criança apareceu na porta do padre hoje de manhã, e ele me disse que seu destino seria um orfanato, eu me vi imaginando o que poderia fazer para ajudar. E então, claro, sua esposa chegou e contou sobre sua trágica perda... Simplificando, eu vi uma maneira de a bebê ser criada por uma família e, ao mesmo tempo, quem sabe, aliviar um pouco a dor que vocês devem estar sentindo pela sua perda. Houve uma pausa e John refletiu sobre o que Ambrose tinha dito. Maggie olhava para o marido com visível esperança. Como o silêncio continuou, Ambrose sentiu que deveria preenchê-lo. – Claro, nenhum de vocês está sob qualquer tipo de pressão para concordar, mas eu pensei que não havia mal nenhum em sugerir um possível caminho que beneficiasse todas as partes. Tanto o padre O’Brien quanto eu fomos educados pelos Padres do Espírito Santo, que nos ensinaram a ser caridosos. Ando sentindo que não fiz o suficiente para ajudar os menos afortunados, estando ocupado com meus estudos em Dublin como estou. John ergueu os olhos e encontrou o olhar de Ambrose pela primeira vez. – É muito dinheiro que o senhor está nos oferecendo, senhor. O que gostaria em troca? – Nada. Na verdade, como Maggie deve ter explicado, qualquer transação entre nós nunca deve ser comentada. Tanto para o seu bem quanto para o bem do padre – explicou ele, indicando James. – O padre O’Brien não pode ter nenhum envolvimento nisso e, de fato, ele não tem. A atenção de John foi desviada para James. – O senhor estudou com o Sr...? – Lister – confirmou James. – Sim, estudei. Posso testemunhar sobre seu caráter e garantir que isso não é nada mais do que um ato de caridade para uma criança sem mãe. – E para nós – murmurou John. – Não precisamos receber tanto para cuidar de um bebezinho. A bebê em questão não parara de choramingar durante toda a conversa e explodiu em um choro a plenos pulmões. – Posso levá-la para a cozinha e dar de mamar? – perguntou Maggie, olhando para o marido com olhos suplicantes. John assentiu. Maggie pegou a criança e saiu quase correndo da sala, como se não suportasse ouvir mais nada. – Acho que antes de começar a discutir as questões práticas, o mais importante é decidir se vocês estão dispostos a ficar com ela – argumentou James, de trás de sua mesa. – O senhor já pode ver que Maggie está apaixonada pela bebê – disse John. – Ela ficou arrasada quando perdeu nossa Mary ontem. E só um ano depois de termos perdido o bebê que veio antes. Claro que ainda esperamos ter outros. Essa criança é saudável? – Eu acho que sim, pelo tamanho dela – respondeu James. – E sua esposa pareceu achar também. John O’Reilly ficou em silêncio por um tempo antes de se manifestar: – O senhor tem certeza de que não quer mais nada da gente? – Nada – confirmou Ambrose. – Tenho certeza de que o padre O’Brien vai me dar notícias da criança, conforme ela for crescendo, e isso será pagamento suficiente. Eu apenas quero ver a criança bem cuidada, com uma família. – A gente cuidaria bem dela, mas não podemos garantir nada se o sarampo ou a gripe rondarem por aqui. – Eu entendo, Sr. O’Reilly. Eu só quis dizer que acompanharia de longe. Mas, se o senhor preferir, posso também não saber de mais nada. – Bem, quanto ao dinheiro... O senhor disse a Maggie que poderia ser em dinheiro vivo? E que poderíamos recebê-lo amanhã? – Sim. – Então devo dizer ao senhor que somos uma família temente a Deus e que, se minha esposa tivesse voltado para casa e me contado sobre a bebê, e com ela ainda tendo leite, talvez eu aceitasse ficar com a menina mesmo sem a sua oferta. Ambrose podia ver pela postura do homem que ele podia ser pobre, mas era orgulhoso na mesma medida. Gostou dele ainda mais. – Eu acredito, Sr. O’Reilly. Posso ver que ama muito a sua esposa, então talvez a melhor maneira seja enxergar essa quantia como um modo de tornar a vida dela e de sua família mais confortável. – Por certo que vai, senhor. Nossa casa é muito úmida. Eu posso consertá-la ou até mesmo construir outra casa para todos nós. Não muito rápido, é claro, pois os vizinhos começariam a se perguntar de onde o dinheiro veio. Eu não quero nenhuma fofoca sobre isso. – Tenho certeza de que vocês serão sensatos o suficiente para garantir que isso não aconteça – intercedeu James. – Devemos lembrar que no centro de tudo isso está uma criança recém-nascida, que precisa de um lar e de uma família. Todos os envolvidos estão realizando um ato de caridade. – Sim, padre, obrigado. Eu vou ser sábio na hora de gastar o dinheiro. Lentamente, com o passar do tempo. Houve uma batida à porta e Maggie surgiu com a bebê nos braços. – Ela está dormindo – disse ela, e então olhou para o marido. – Está vendo, John? Ela não é linda? John se levantou para olhar a bebê e deu um pequeno sorriso. – Ela é linda, sim, meu amor. – E então? – Era como se Maggie mal tivesse coragem de perguntar. John se voltou para Ambrose e James: – Podemos levá-la direto para casa agora? – Meu bom Deus – disse Ambrose quando James retornou ao escritório, tendo se despedido do jovem casal e de sua nova filha. – Eu me sinto exausto. James viu quando Ambrose pegou um lenço e limpou os olhos. – O que houve? – Ah, um misto de coisas – explicou Ambrose. – Mas principalmente John O’Reilly: um dos mais pobres ratos de sua igreja e ainda assim tão orgulhoso. – Ele é um homem bom – concordou James. – E adora o chão em que a esposa pisa. O que é bom de se ver, dada a quantidade de casamentos que realizei que mais pareciam uma união de terras do que a de um homem com uma mulher. Eles se casaram por amor, com certeza. – Você se importaria se eu me servisse uma dose de uísque? Depois de toda essa agitação, sinto que preciso disso para acalmar meus nervos. – Você fez uma boa ação hoje, meu amigo. Sláinte – brindou James ao aceitar um copo de uísque de Ambrose. – Um brinde a você e à bebê. – Que vai se chamar Mary, como eles queriam, o que é uma pena. Eu tenho uma série de belos nomes gregos. Atena, talvez, ou Antígona... – Fico feliz por ela receber um nome em homenagem à Santa Virgem – disse James, sorrindo. – Mary é especial, James, dá para sentir. É meu dever cuidar dela. – Concordo que Deus trabalha de maneiras misteriosas. – Eu chamaria de destino, mas devo admitir que minha viagem até aqui, combinada com a ausência da Sra. Cavanagh e com uma mãe que perdeu uma filha recentemente, realmente parece que estava escrito. – Eu ainda vou convertê-lo – garantiu James, com um sorriso. Na manhã seguinte, Ambrose foi até o banco da vila, sacou a quantia que prometera aos O’Reillys e depois voltou a pé, subindo a colina. Pegando emprestados dois envelopes da mesa de James para guardar o dinheiro, ele separou os valores e os selou. A retirada não faria a mínima diferença em seu fundo, mas para os O’Reillys representava segurança financeira pelos próximos cinco anos. A Sra. Cavanagh estava rondando pela casa, reclamando de qualquer coisa que pudesse encontrar para sugerir que “a garota O’Reilly” não tinha sido cuidadosa em suas obrigações, então ele enfiou os envelopes na gaveta da mesa. Houve uma batida à porta do escritório. – Entre – disse ele. – O senhor vai ficar para o almoço, Sr. Lister? – Não, Sra. Cavanagh. Meu trem parte ao meio-dia, então vou para a estação daqui a quinze minutos – respondeu Ambrose, verificando seu relógio. – Certo, então. Boa viagem – desejou ela, quase batendo a porta atrás de si quando saiu. Ele podia sentir a animosidade que emanava da mulher. Mesmo tendo notado que ela não era uma amante da raça humana em geral, sua antipatia por ele era palpável, apesar de Ambrose ser um convidado do homem para quem ela trabalhava. Era óbvio que ela achava inapropriado que o padre tivesse um amigo que o visitasse todo mês. Ele fazia o possível para ser educado, pelo menos pelo bem de James, mas aquela mulher era encrenca certa. James entrou no escritório e lhe deu um sorriso fraco. – Você parece cansado, meu amigo. – Não dormi bem ontem à noite, depois de toda aquela... atividade. – Está preocupado? – Não com o ato em si, mas a mentira me preocupa. Se alguém descobrir que eu estou associado a isso... – Ninguém vai descobrir; os O’Reillys não vão contar nada, tenho certeza. Ambrose levou um dedo aos lábios quando ouviram passos ao longo do corredor. – Vou sair agora – avisou Ambrose com uma voz neutra, enquanto ia até a gaveta para mostrar a James onde estavam os envelopes. James assentiu. – Vou entregá-los a Maggie na próxima segunda-feira, quando ela vier trabalhar, como combinamos – sussurrou ele. Houve outra batida à porta do escritório e a Sra. Cavanagh apareceu mais uma vez. – Não se esqueça, padre, o senhor tem o ensaio do coral daqui a dez minutos. O organista remarcou de quinta-feira, porque será o Dia da Feira na cidade e ele tem que levar duas de suas novilhas para lá. – Obrigado por me lembrar, Sra. Cavanagh. Eu tinha esquecido. Ambrose, vou caminhar com você até a igreja. Os dois saíram de casa e caminharam a curta distância até a frente da igreja. O som do órgão já podia ser ouvido lá dentro. – Obrigado por vir, Ambrose. Vou escrever para você. – É claro, e eu vou tentar vir pelo menos uma vez antes do Natal. Precisamos manter um olho atento em nossa Mary, certo? – sussurrou. James tocou no ombro dele. – Faça uma boa viagem, meu amigo. Obrigado. Ambrose assistiu enquanto ele entrava na igreja. Em seguida, virou-se para descer as escadas e partir para a pequena estação ferroviária. Ele sempre era tomado por uma sensação de perda quando se despedia de James, mas pelo menos agora, por causa de uma recém-nascida abandonada, Ambrose podia se reconfortar com a ideia de que compartilhavam um segredo que duraria a vida inteira.